"A história mesma da pesquisa que deu origem a este livro contribui para fazer entender as transformações pelas quais passou o pensamento da autora e a destinação imediata do produto. Em sua primeira versão, tratava-se mesmo de uma coletânea de melodias folclóricas (mais tarde, o universo alarga-se para as músicas populares urbanas e para exemplos da chamada música erudita), com o objetivo de fornecer dados teóricos para a compreensão do fenômeno modal (formação de escalas, utilização dos intervalos característicos dos diversos modalismos, etc.), dentro do contexto da então ainda chamada teoria musical, disciplina que pretendia dar conta dos materiais e das estruturas básicas do fazer musical e que, por suas próprias características, contribuía para alimentar ambigüidades e contradições que só começaram a ser realmente resolvidas nas duas ou três últimas décadas do século XX. Dividindo-se ela mesma em dois segmentos quase independentes, aquela teoria musical tinha uma cara quando fazia o ditado e o solfejo, embora nem sempre seu material de base trouxesse clara relação com as músicas estudadas e utilizadas em outros contextos do aprendizado escolar, em qualquer de seus níveis. Mas a coisa se agravava realmente quando a disciplina voltava-se para sua faceta chamada teórica, sobretudo porque quase nunca ficava muito clara a reflexão lógica sobre o fato musical examinado, estabelecendo-se dicotomia que afastava mesmo os alunos mais dedicados (uma das dificuldades era a gratuidade dos conceitos, apresentados sem ordem de necessidade musical e desligados de qualquer prática). E esta dicotomia gerou afirmações que tiveram força de aforisma, quando pretendiam que a desgraça do ensino musical era o excesso de teoria. Foi preciso que músicos-pesquisadores do quilate de Antônio Jardim e Carole Gubernikoff negassem peremptoriamente esta falsa constatação e afirmasse que, ao contrário, um dos males do ensino musical era a radical falta de teoria, que pudesse dar base à incipiente prática musical escolar.
Quando faz a análise de sua extensa coleta de melodias modais, Ermelinda A. Paz entende que não basta fornecer materiais e exemplos. Desde o início da segunda metade do século XX, já se podia perceber mudanças qualitativas importantes na produção musicológica brasileira, apontando exatamente para o maior rigor analítico e conceitual que caracterizarão o trabalho de Ermelinda. Um certo sectarismo presente nos estudos do Padre José Geraldo de Souza (1959, 1969) não o impediu de dar ordenamento claro ao material que estudou, quase sempre sobre o foco da influência direta e imediata do Canto Gregoriano sobre o folclore nacional. Muitos textos aparecidos a seguir nas publicações do antigo Instituto Nacional do Folclore apontam para a mesma direção, trazendo contribuições importantes enquanto coleta mais ou menos sistematizada (e, por isto, mais confiável) do material dito folclórico e, em alguns casos, buscando ordenamento teórico ao mesmo tempo mais abrangente (capaz de relacionar realidades diferentes mas análogas e de estabelecer categorias teóricas mais claras) e formulação mais voltada para visão renovada da cultura popular. Talvez ainda estivéssemos longe demais não apenas dos modelos mais modernos da musicologia sistemática, mas também da nova visão etnomusicológica, que, pouco a pouco, virtualmente acaba com o campo do folclore, ao menos aquela visão romântica de folclore que ainda vigorava.
As preocupações pedagógicas da autora são responsáveis por detalhes da construção da pesquisa e da elaboração de seus resultados. A professora sabe que existem limites para o que não pode ser mais que coletânea de casos exemplares, razão pela qual é tão importante a proposição de critérios claros de seleção (a seleção de exemplos pode informar mais que listas de argumentos). Seleção e ordenamento, que permitirão dirimir dúvidas nem sempre solucionadas de modo cristalino e definitivo. Em análise musical, a melhor teoria pode guardar ainda parcelas importantes de ambigüidades. Mas pode-se criar categorias analíticas e estruturais, que expliquem e justifiquem aproximações e afastamentos. Por outro lado, a docente exigente foi levada a constatar óbvio pouco denunciado: as dezenas ou centenas de estudos teóricos sobre o modalismo musical brasileiro (o mesmo pode ser dito com relação a respeitados estudos publicados no exterior e sobre problemas musicais europeus, africanos e asiáticos) trazem como pecado mais básico o uso de terminologia indefinida e, por isto mesmo, de extrema imprecisão. Cada autor importa de tratados respeitáveis categorização e denominação dos modos, esquecendo-se de que tal categorização e denominação atende a requisitos teóricos que precisam ser claramente explicitados. Em razão disto, não é de todo incomum que o mesmo modo receba denominações diferentes (saídas de diferentes fontes), sem que o autor se dê conta de que utiliza-se de categorias diferenciadas. Tendo claro para si o problema, não foi difícil estabelecer-lhe solução, conseguida através da série de Anexos I, II, III e V, que apresentam quatro diversas classificações e permitem visão comparativa de grande riqueza. O Anexo VI, por seu lado, faz inventário útil da terminologia adotada na literatura para definir ocorrências modais, aproximando conceitos dispersos e permitindo visão comparativa que facilita a compreensão do aluno.
A coletânea de material procedência da música popular urbana contribui para mostrar a forte presença do modalismo nesta área de produção musical, assim como para ajudar a estabelecer liames com os modelos modais da área folclórica. Estudos mais abrangentes sobre a música popular urbana cobrirão lacunas que possam ser encontradas e ajudarão a entender o processo de construção musical – e, obviamente, de recepção musical – do populário urbano e da música rural de consumo.
À vasta coletânea de melodias dos universos ditos folclórico e popular, o trabalho acrescenta boa seleção de música religiosa católica e evangélica de cunho claramente modal. No que se refere ao fenômeno católico, o fenômeno é facilmente explicável. Como se sabe, desde o início da segunda metade do século XX, nasceu forte corrente de renovação litúrgica (sem nenhuma conotação qualitativa dos aspectos musicais da produção da época, nem quanto à adoção simplificadora de modelos popularizantes ) que, em música, iria chamar-se o canto pastoral. Instituiu-se que a verdadeira brasilidade vinha do Nordeste, e análise mesmo superficial mostra que percentual enorme do produto de meio século de canto pastoral tem cara modal e jeitão nordestino. O que quer dizer, ao mesmo tempo, que a constituição de amostragem exemplar não constitui tarefa complicada, porque as músicas se parecem enormemente. Caberia a pergunta: há forte incidência de compositores de origem nordestina? Sabe-se que a maior parte da produção foi feita por amadores e semi-profissionais, muitas vezes seminarista e padres, que compunham para comunidades definidas e acabavam por ser aceitos em comunidades maiores, sobretudo quando eram vencedores de concursos da própria CNBB. Mas a origem nordestina não era determinante, uma vez que a literatura folclórica – inclusive a produzida pelo canto pastoral – encarregava-se de identificar os nordestinismos com o caráter mesmo da música brasileira.
No caso da música evangélica, nota-se que o fenômeno é bastante mais complexo. São muitas as dissertações de Mestrado produzidas nas duas últimas décadas do século XX que tratam da estrutura administrativa do ministério de música de diversas denominações protestantes e, indiretamente, fazem análise do repertório utilizado no culto. Estes estudos acentuam o caráter conservador de determinadas denominações, que têm hinários tradicionais que vão sendo reeditados seguidamente, garantindo uma identidade musical determinada. Mas eles mostram também que algumas denominações têm atitude mais dinâmica e promovem a produção de novos repertórios, nos quais o emprego de estereotipias do nacional podem atuar como a tendência aos modelos nordestinos notada na produção do repertório do canto pastoral católico. Pode-se perguntar também se, nos casos católico e evangélico, a busca de modelos mais próximos da chamada música popular urbana não privilegiaria uma produção que tende a refletir os lados mais primitivos da música rural, ela mesma relacionada com modelos de procedência mais distante, com forte influência dos modalismos folclóricos.
Não deixa de ser rico, igualmente, o mostruário de exemplos tirados de músicas eruditas de procedências as mais diversas, mas sempre refletindo postura estética nacionalista que privilegia o folclore. No que me concerne, apareço citado por causa de uma obra que deu muito o que falar no fim dos anos 60, através de duas versões realmente autônomas: a Missa do Povo e a Missa de São Benedito (esta última, para solista, viola de arame, tamba e Coro duplo de vozes iguais, que teve Clementina de Jesus, eu mesmo na viola, Hélcio Milito, Coral H. Stern e regência de Antônio Lage, em temporada iniciada na Sala Cecília Meireles e continuada em mais de trinta concertos nos mais diversos locais). O modalismo desta missa é mais que evidente, e busca ter cara mais mineira que nordestina. Mas não deixa de ser curioso que, em apresentação recente, dei-me conta do caráter altamente modal – e formalmente “fechado” e tradicional – de uma obra eletro-acústica de 1971, chamada Un-x-2. Todo o sistema de alturas obedece a uma lógica modal clara, que dá à obra uma unidade sonora que não teria sido assegurada apenas pelos aspectos tímbricos.
Para concluir, quero dizer que este estudo de Ermelinda A. Paz pode ser mesmo visto como uma autêntica proposta de Teoria da Música, e não apenas uma antologia de apoio à chamada teoria musical, de finalidade prática e educacional, como material de apoio a exercícios de solfejo ou de análise musical, ainda que, sobretudo para a análise musical, o ordenamento da matéria e a clarificação da terminologia técnica represente contribuição importante. Mas certamente a proposta vai mais longe e se introduz no campo da musicologia sistemática e da teoria da música, revelando-se como um dos primeiros estudos a organizar dentro de tais categorias o material modal que bem exemplifica as músicas tradicionais, populares e eruditas brasileiras". José Maria Neves (2002) Professor Emérito da UNIRIO.